A violência doméstica é uma realidade que atravessa todas as fronteiras sociais, afetando mulheres independentemente de classe, raça, etnia, religião, orientação sexual, idade ou nível de escolaridade. Diariamente, nos deparamos com notícias de vítimas que foram agredidas ou perderam suas vidas nas mãos de seus companheiros, ou ex-companheiros.
As mulheres que sofrem violência não falam sobre o problema por um misto de sentimentos: vergonha, medo, constrangimento. Os agressores, por sua vez, não raro, constroem uma autoimagem de parceiros perfeitos e amorosos dificultando a revelação da violência pela mulher.
Em muitos desses casos, as vítimas já enfrentavam diferentes formas de agressão por um longo período, mas a gravidade da situação só se torna visível para a sociedade quando a violência atinge seu extremo, resultando em feminicídio.
Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada para combater e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Composta por 46 artigos, divididos em sete títulos, a lei se fundamenta na Constituição Federal (art. 226, § 8°) e em tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a Convenção de Belém do Pará e o Pacto de San José da Costa Rica, além da Declaração Americana dos Direitos Humanos e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
Estão previstos cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher na Lei Maria da Penha: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial − Capítulo II, art. 7º, incisos I, II, III, IV e V.
O título IV da lei, composto por quatro capítulos e 17 artigos, trata dos procedimentos legais e da assistência judicial, com destaque para a atuação do Ministério Público. Entre as inovações mais importantes da lei estão as medidas protetivas de urgência, detalhadas no Capítulo II, que visam proteger a vítima de novas agressões.
Conheça a Lei na íntegra https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
Violência alarmante
Rondônia destaca-se negativamente no cenário nacional pelos alarmantes índices de violência contra mulheres. Em 2023, o estado liderou o ranking de feminicídios no Brasil, superando até mesmo o Amazonas, que tem uma população 1,5 vezes maior. Os dados foram divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública e pelo DataSenado.
Em 2024, os números continuam preocupantes, entre janeiro e outubro foram mais de 8 mil ocorrências relacionadas à violência doméstica no estado. Porto Velho, concentra 2.719 desses casos, seguida por Ariquemes com 736, Vilhena com 726 e Ji-Paraná com 697.
Ouvidoria das Mulheres
Em Rondônia, os esforços para enfrentar essa realidade têm se intensificado, entre as ferramentas mais importantes na luta contra a violência está a Ouvidoria das Mulheres, um canal criado pelo Ministério Público para receber denúncias primando pelo acolhimento e escuta humanizada da vítima.
A Ouvidoria das Mulheres também promove encaminhamentos para apuração de violência doméstica e as mais diversas formas de violações de direitos e que permite a qualquer cidadão – seja vítima direta ou não – denunciar abusos e solicitar medidas protetivas para mulheres em situação de vulnerabilidade.
O questionário online, está disponível no site do Ministério Público, garantindo que as informações cheguem diretamente aos promotores responsáveis pela análise e encaminhamento de medidas legais.
Como Funciona a Ouvidoria das Mulheres?
O processo começa com a Seção 1, que identifica quem está registrando a denúncia, questionando se a pessoa é a vítima ou está relatando o caso em nome de outra. Esse primeiro passo assegura que o relato seja corretamente direcionado.
Na Seção2, são solicitados os dados pessoais da vítima, como nome, data de nascimento e telefone, além de outras informações opcionais, como endereço, para facilitar uma intervenção ágil por parte do MP-RO.
A Seção 3 busca detalhes sobre a violência sofrida, como o local dos fatos, o tipo de agressão (física, psicológica, sexual, etc.) e se o agressor tem posse de armas ou algum vínculo com a vítima. Essas informações são essenciais para avaliar a gravidade do caso e definir as medidas de proteção necessárias.
Na Seção 4, o (a) denunciante deve fornecer os dados do agressor, incluindo nome, endereço e, se possível, redes sociais, para facilitar sua identificação.
A Seção 5 permite que o denunciante faça um relato detalhado dos fatos, oferecendo contexto e esclarecendo detalhes que possam auxiliar na investigação.
Medidas Protetivas
Na Seção 6 o (a) denunciante pode solicitar medidas protetivas, como o afastamento do agressor ou a proibição de contato com a vítima, com base na Lei Maria da Penha. Essas medidas são cruciais para garantir a segurança da vítima enquanto o caso é investigado.
A Ouvidoria ainda permite que o cidadão indique se o caso já está sendo investigado ou se há processos em andamento, oferecendo a possibilidade de solicitar providências diretamente ao Promotor ou Promotora de Justiça.
Por fim, o processo de denúncia é concluído com a assinatura digital de uma declaração, confirmando a veracidade das informações fornecidas, garantindo que os dados serão tratados com a seriedade e urgência necessárias.
Esses esforços têm se mostrados essenciais diante do aumento expressivo das medidas protetivas concedidas nos últimos anos através das solicitações do Ministério Público de Rondônia. Em 2020, foram registradas 2.516 medidas, subindo para 3.330 em 2023. O número de medidas protetivas emitidas também cresceu, com 1.428 apenas no primeiro semestre de 2024.
A promotora da Promotoria de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Ministério Público de Rondônia, Tânia Garcia explica como é analisado cada denúncia.
“Nós temos em Rondônia dois juizados que lidam apenas com violência contra mulher, dentro desses juizados, a prioridade para as medidas protetivas são nos casos em que a violência aconteceu recentemente, e em casos onde há repetitividade de algum tipo de agressão, porque essa repetitividade acaba sendo um fator muito considerável para o feminicídio”.
Da “Lua de Mel” para medidas protetivas
Amanda (nome fictício), 38 anos, professora, há 10 anos conheceu profundamente os horrores de ser vítima de um ciclo de violência e ter sobrevivido.
No início do relacionamento ela conta que o ex-marido era muito atencioso, carinhoso, mas às vezes soltava indiretas demonstrando não gostar da aproximação de seus amigos que fossem do sexo masculino e que logo fechava a cara, deixando todos desconfortáveis.
“Ele se emburrava e não falava mais comigo, quando então ficávamos sozinhos ele surtava, pois dizia que por ser homem, percebia as segundas intenções de outros homens, e então ele começava a bater portas, quebras coisas, ele ainda não me batia, mas me culpava totalmente pelo surto dele. Dizia que amava e que iria se controlar, mas esse ciclo foi só piorando “, relembra.
Com um ano de relacionamento ela resolveu aceitar o pedido de casamento e se casaram um mês depois na igreja e cartório, Amanda acreditava que isso deixaria o ex-marido menos inseguro, mas o pesadelo piorou.
“Após três meses de casamento, não tinha mais autorização para sair sozinha, mesmo tendo habilitação ele ia me levar e buscar no trabalho para garantir que eu não estava de “papo fiado” com macho”, narra com choro engasgado.
Amanda já não suportando está vivendo prisioneira, pediu para o ex-marido leva-la para a casa de seus pais, ele não gostou nada da ideia e sumiu deixando a trancada por dois dias, quando retornou quebrou tudo mais uma vez.
“Ele bebeu naquele dia e chegou em casa muito alterado, eu não sabia onde ele estava, fui exigir explicação e então fui espancada pela primeira vez, ele quebrou meu celular e tudo que me restava dentro de casa, gritei por socorro e os vizinhos acionaram a policia, mas ele fugiu e só foi feito boletim de ocorrência. E nesse momento que achei que teria ajuda fui mais uma vez violentada, quando o policial me perguntou ironizando, “o que você aprontou enh?”, conta chorando.
Ameaças
Mesmo após a separação, o ex-marido não a deixou em paz. Ele a perseguia incansavelmente, ficava ameaçando até mesmo pessoas próximas de trabalho e amizade da professora. Além disso, chegou por vezes invadir sua casa, e fazia constantes ameaças, mandando fotos de arma e dizendo que ele a mataria.
Amanda se mudou várias vezes de residência tentando fugir e se esconder, mas o medo a acompanhava a cada instante. Na última invasão, o desespero foi absoluto e ela achou que não ia sobreviver.
“Era madrugada e eu estava dormindo quando ele invadiu minha casa. Pulou o muro, arrombou a janela. No escuro, eu só conseguia me arrastar pela casa, tentando me esconder. Mas ele me encontrou, puxou pelos meus cabelos, e me arrastou pelo chão da minha casa e com muita força me jogou na cama. Ele queria me forçar a manter relação sexual com ele, eu lutei, mas ele me agrediu com muitos tapas no meu rosto. Tentei gritar, mas ele abafava meu desespero com um travesseiro. Naquele momento, eu tinha certeza que ia morrer”, narra a vítima.
Apesar de já ter obtido medidas protetivas, o agressor parecia inalcançável. Foram inúmeras idas à delegacia, boletins de ocorrência registrados, mas as respostas tardavam. Enquanto isso, ele continuava destruindo seus pertences, seu psicológico e emocional com as ameaças de morte, sem que qualquer medida enérgica fosse tomada.
“Ele não conseguiu me violentar sexualmente, mas me deixou com vários hematomas pelo corpo e na minha alma. Fiz novo boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher, realizei o exame de corpo e delito, mas ele seguiu me ameaçando e vivendo livremente, eu já não sabia mais a quem recorrer e foi quando desabafei com uma colega de trabalho”,
A coragem que rompeu o silêncio
Amanda foi orientada a buscar apoio no Ministério Público de Rondônia (MP-RO) na Sala Lilás, o atendimento imediato mudou o curso de sua vida.
“Eu vivia em constante terror, cada barulho me fazia pensar que ele estava lá, pronto para me machucar de novo. Mesmo com a medida protetiva, eu me sentia prisioneira em casa, sem saber se sairia viva no dia seguinte. Foi só quando decidi buscar ajuda no Ministério Público que algo realmente mudou. Lá na sala Lilás pela primeira vez, eu senti que minha voz estava sendo ouvida, que alguém estava do meu lado para me proteger”.
Ao formalizar a denúncia junto a promotoria especializada, o MP-RO avaliou a gravidade da situação e, para garantir sua segurança e a de seus filhos, solicitou que fossem encaminhados a um abrigo protegido já que o risco era eminente. Amanda permaneceu no local por 20 dias, até que o agressor fosse preso. Durante esse período, ela recebeu o suporte necessário enquanto aguardava o desfecho das medidas judiciais.
A promotora de justiça, Tânia Garcia reforça a importância das vítimas driblarem o medo e buscarem os canais do Ministério Público para registrar as denúncias de violência doméstica.
“Essa mulher vítima de violência pode fazer sua denúncia pelo site do Ministério Público, pelos canais da Ouvidoria das Mulheres que atendem pelo WhatApp, atendimento telefônico e também o atendimento diretamente na Sala Lilás que é uma sala de atendiemento e acolhimento das mulheres que estão em situação de violência”
Sala Lilás
A Sala Lilás, criada há nove anos, se consolidou como um espaço crucial no combate à violência doméstica em Rondônia. Mais do que um local de atendimento, é uma verdadeira linha de frente na luta contra a violência de gênero.
Em 2020, as promotoras atenderam 536 vítimas, número que saltou para 834 em 2023, demonstrando a crescente demanda por proteção. No primeiro semestre de 2024, os números já somam quase 700 atendimentos, demostrando um aumento de mais de 23%, evidenciando a gravidade do problema e a importância desse espaço para as vítimas de violência doméstica.
“Seguimos um protocolo que é colocar em acompanhamento mais intenso pela Sala Lilás, mulheres que estão em um ciclo de violência repetitiva, onde já há medida protetiva e não está sendo respeitado pelo agressor, pois nesses casos todas as outras ferramentas para proteção dessa vítima já foram utilizadas, então onde ela encontra acolhimento e proteção com um tempo de resposta maior”, enfatizou a promotora Tânia.
A Sala Lilás não é apenas um local de acolhimento, é um símbolo de resposta rápida e efetiva do Ministério Público de Rondônia para enfrentar agressões, feminicídios e outros crimes relacionados à violência doméstica. A rede de proteção oferecida através desse serviço especializado, garante suporte jurídico e emocional às vítimas, com agilidade na concessão de medidas protetivas e ações judiciais. A urgência e a eficiência são marcas desse atendimento, reafirmando o compromisso do MP-RO em proteger e salvar vidas em meio a um contexto de brutalidade e ameaças constantes.
A busca pela condenação
Após a promotoria do MP-RO apresentar denúncia, o juri julgou todas as acusações procedentes e condenou o ex- marido de Amanda pelos crimes de violência doméstica, cárcere privado e tentativa de estupro, a 7 anos e meio em regime fechado. O agressor está com mandado de prisão expedido após 10 anos recorrendo da prisão.
“Temos conseguido hoje com muita eficiência do Ministério Público de Rondônia provar em plenário que aquele crime de violência contra a mulher aconteceu no contexto com certa intensidade, simplesmente pela vítima ser mulher, e ela estava inserida dentro de uma relação abusiva, e as penas tem sido cada vez mais altas e proporcionais a essa gravidade comportamental” completou a promotora.
Frente a esses números alarmantes, o Ministério Público de Rondônia tem intensificado sua atuação no combate à violência doméstica e ao feminicídio. De outubro de 2023 a setembro de 2024, foram realizados seis júris envolvendo 14 tentativas de feminicídio e dois casos consumados, resultando em 12 condenações.
O recomeço
Essa história, infelizmente, é apenas uma entre milhares em Rondônia, mas a vida de Amanda teve um recomeço e o poder da denúncia fez toda a diferença.
“Ainda acordo na madrugada assustada, não saio de casa sozinha, evito lugares tumultuados, eu tenho receio de um dia encontra-lo novamente, é como se eu revivesse aquele dia, hoje faço terapia mas ainda não consigo conter o choro, apesar de ter se passado 10 anos, ainda dói muito. Mas hoje tenho plena certeza que se estou viva para contar história foi pela atuação do Ministério Público. Tenho confiança nesses profissionais por vê que a justiça está sendo feita”, finalizou a vítima.
Não se cale
Quando a vítima silencia diante da violência, o agressor não se sente responsabilizado pelos seus atos — isso sem contar o fato de que a sociedade, em suas diversas práticas, reforça a cultura patriarcal e machista, o que dificulta a percepção da mulher de que está vivenciando o ciclo da violência.
“É importante reforçar como sociedade, como família, como instituição, quanto como imprensa que todo suporte as vítimas, seja familiar, social, ou pelo sistema de proteção, tem que ser oferecido desde o início, todos tem direito a serem felizes, estamos aqui como instituição para garantir que essas mulheres possam recomeçar “, concluiu a promotora.
Papel da imprensa no empoderamento do cidadão
A história de Amanda ilustra o papel fundamental do MP-RO na proteção de vidas. Seja por meio de suas promotorias especializadas, da Sala Lilás ou de suas plataformas de denúncia, o Ministério Público de Rondônia continua a liderar o combate à violência doméstica, oferecendo às vítimas a chance de recomeçar suas vidas com dignidade e segurança. A justiça não pode esperar, e o Ministério Público de Rondônia está garantindo que ela chegue para todos.
A força dessa rede de proteção vai além das instituições. A parceria entre o Ministério Público e a imprensa na comunicação pública tem sido importante para dar visibilidade às ferramentas de denúncia e às ações de proteção, empoderando o cidadão e amplia o alcance das informações, possibilitando que mais pessoas conheçam seus direitos e saibam como buscar ajuda.
Canais de atendimento do MP/RO
Central de Atendimento
(69) 3216-3700
Atendimento Libras
(69) 3216-3700
Whats App
(69) 999 770 127
(69) 999 770 180
Texto: Acácia Cavalcanti – Jornalista DRT 1643/RO