Em 22 de dezembro passado, um grupo de oito indígenas isolados apareceu em uma mata ao sul da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, um dos territórios mais desmatados na Amazônia durante o governo de Jair Bolsonaro. Dois trabalhadores rurais estavam construindo um curral perto do rio São Miguel quando os indígenas surgiram nus, com adornos na cintura, todos homens adultos e portando arcos e flechas “bem grandes”. Eles ficaram parados em pé, apenas observando, a cerca de 200 metros.
O contato visual durou cerca de 15 minutos, quando então os indígenas, provavelmente assustados pela chegada de uma motocicleta, retornaram à floresta. Desde então, não houve mais notícias sobre eles.
Alertada pelos moradores da região, uma equipe da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), liderada pelo experiente indigenista Fabrício Amorim, da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau, ainda em dezembro, foi ao local, entrou na mata e “confirmou vestígios, rastros e restos de comida”.
A Funai ainda não sabe se os indígenas avistados são parte dos “Isolados do Cautário”, grupo cujo integrante, em 2020, disparou uma flecha que atingiu o peito e matou um dos mais importantes indigenistas então em atividade no país, o servidor da Funai Rieli Franciscato, quando ele observava à distância o grupo na mata. Rieli tentava evitar um atrito entre os isolados e a população não indígena na zona rural de Seringueiras, em Rondônia. O local da morte do indigenista fica a cerca de 70 km do ponto em que o grupo foi visto em dezembro.
O indigenista Antenor Vaz, consultor sobre o tema dos indígenas isolados, levantou a possibilidade de que os oito indígenas sejam da etnia referida há anos pelo povo indígena Amondawa como os Yrapararikuara. Para Vaz, é importante que a Funai continue monitorando e pesquisando as ameaças a esse grupo isolado, a fim de garantir uma proteção efetiva.
O indigenista Elias Bígio, outro especialista no tema dos isolados, lembrou que “Rieli Franciscato sempre dizia que não havia apenas um grupo isolado na região; não ser uma única etnia”. Ele defende que é preciso continuar investigando a fundo o motivo pelo qual indígenas isolados têm surgido com mais frequência naquela região de Rondônia nos últimos anos. “A hipótese é que os indígenas estão aparecendo, como ocorreu no Cautário, em virtude de algum tipo de pressão ainda não muito bem identificado”, disse Bígio, da Operação Amazônia Nativa (Opan).
Os Yrapararikuara foram citados numa recomendação emitida em março de 2021 pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e dirigida a diversos órgãos públicos, incluindo Funai, Ibama, Polícia Federal e Polícia Militar de Rondônia. No documento, o CNDH alertou para a necessidade de “adoção de medidas para garantia de direitos humanos dos povos indígenas que habitam a Terra Indígena Uru Eu Wau Wau”.
Segundo relatório do CNDH, que cita um trabalho de Antenor Vaz, o nome dos Yrapararikuara decorre de “esses isolados transportarem grandes arcos e flechas”.
“Seu território atual se estende a partir no centro-sul da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, abrangendo desde a bacia do rio Cautário, a oeste, até a bacia do rio São Miguel, a leste. A partir da criação, em 2010, da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau pela Funai, o conhecimento sobre esse povo aumentou bastante. Aparentemente, subdividem-se em pequenos grupos estabelecidos em determinadas regiões, relacionando-se possivelmente entre si. Não desenvolvem agricultura e vivem basicamente dos produtos de coleta, pesca e caça. Não é grande a gama de objetos produzidos por eles.
Dormem em redes tecidas com entrecascas de determinadas espécies de árvores, confeccionam arcos e flechas e cestos simples trançados”, apontou a recomendação do CNDH.
Em 2015, uma expedição da Funai localizou e fotografou redes de dormir utilizadas por esses isolados.
Homologada em 1991, com 1,8 milhão de hectares, a terra indígena abrange 12 municípios de Rondônia. Nela vivem os povos Oro Win, Uru-Eu-Wau-Wau e Amondawa. O CNDH apontou que no sul e no sudeste da terra há ainda a “presença confirmada de povos indígenas em situação de isolamento, além de outros dois registros no interior da TI, ainda em fases de pesquisa para a confirmação”.
“A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau sofre grande pressão de invasores, notadamente de posseiros, grileiros, garimpeiros e madeireiros, registrando, no ano de 2019, as maiores taxas de desmatamento dos últimos dez anos, sendo a oitava terra indígena mais desmatada do país em 2019”, apontou o CNDH.
O mais recente avistamento dos isolados preocupa a Funai e indigenistas porque se trata de uma área muito visada por pescadores e caçadores e que sofre pressões dos plantadores de soja, que usam, no entorno da terra indígena, uma gama de agrotóxicos. De acordo com avaliação dos servidores da Funai, o veneno tem levado ao desequilíbrio ecológico da área e pode afetar o regime alimentar dos indígenas isolados. Nota-se a redução da produção de mel na região, por exemplo.
A proximidade de um grupo isolado com não indígenas também pode levar à contaminação dos indígenas por doenças. No organismo de um indígena isolado, uma simples gripe pode evoluir rapidamente para uma pneumonia fatal, como tantas vezes já registrado no passado.
A Funai fez a atualização vacinal de todas as suas equipes na região e enfatizou a necessidade do aumento de fiscalização com uma equipe permanente na área.
No final do ano passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou que a União apresente os planos de desintrusão e um cronograma para o ano de 2024 em relação a sete terras indígenas cujas invasões recrudesceram durante o governo do Bolsonaro e que são alvo de atenção na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 709.
A terra Uru-Eu-Wau-Wau é um dos sete territórios abordados na ADPF. Os ministérios do governo Lula têm discutido o cronograma dirigido ao STF.
Edição: Ed Wanderley