Nas águas da Amazônia, a batalha entre o pirarucu e a piranha é cheia de superlativos: de um lado, está um dos maiores peixes de água doce e com algumas das escamas mais resistentes do mundo natural; do outro, um peixe carnívoro com uma das mordidas mais poderosas entre os animais.
Onívoro, nativo da Amazônia e com comprimento que pode chegar a 3 metros, o pirarucu (Arapaima gigas) é quem precisa escapar das piranhas (pertencentes à subfamília Serrasalminae). Estas têm dentes em formatos triangulares que agem como uma guilhotina e são um dos principais predadores nos lagos sazonais, onde outros peixes ficam “presos” com a variação do nível da água.
Mas, no processo evolutivo, o pirarucu armou-se, quase literalmente, com escamas altamente resistentes e flexíveis diante do impacto externo – de uma mordida, por exemplo.
Pesquisadores de universidades americanas, da Califórnia San Diego (UCSD) e Califórnia Berkeley, publicaram nesta quarta-feira um artigo no periódico Matter detalhando o funcionamento desta “armadura” – em suas palavras, as escamas deste gigante da Amazônia estão entre “os mais resistentes materiais biológicos flexíveis da natureza”.
Eles, da área da engenharia de materiais, vêm pesquisando este escudo do pirarucu há alguns anos, objeto de estudo que inclusive já gerou outras publicações antes. Mas, desta vez, os autores do trabalho na Matter revelam os resultados de testes de resistência observados a nível microscópico nas escamas do pirarucu.
No Brasil, pesquisadores também vêm destrinchando as propriedades do pirarucu, como sua pele rica em colágeno com potencial comercial (leia mais abaixo).
Já na publicação da Matter, os autores destacam que a compreensão de como funciona o “escudo” do pirarucu pode levar, no futuro, à sua imitação em itens como coletes à prova de balas.
Duas camadas poderosas de proteção
Para que as escamas dos peixes deem proteção contra os predadores sem comprometer a mobilidade, elas precisam ser leves, flexíveis e resistentes – “e as escamas do pirarucu são um excelente exemplo disso”, dizem os autores.
As escamas do gigante amazônico são formadas por duas camadas: a mais externa, altamente mineralizada e dura; a mais interna, composta sobretudo por fibrilas de colágeno e maleável. Nesta camada, as fibrilas de colágeno estão colocadas em um padrão chamado Bouligand, uma estrutura parecida com um compensado amplamente observada na natureza.
O colágeno é uma proteína produzida naturalmente por animais e funciona como uma “cola” que junta os elementos do nosso corpo, por isso é um dos componentes mais importantes do tecido conjuntivo. Sua presença pode ser sentida nas cartilagens do nariz e das orelhas, onde podemos perceber que trata-se de um material ao mesmo tempo maleável e firme.
A resistência, a força e as propriedades mecânicas das escamas do pirarucu já são conhecidas, dizem os autores da publicação, mas até então, acrescentam, era pouco compreendida sua “tenacidade à fratura” – a habilidade de um material resistir antes de quebrar ou ter algum tipo de deformação sob impacto.
Assim, os cientistas colocaram amostras de escamas do pirarucu em placas, as perfuraram em laboratório e capturaram imagens microscópicas do processo. Também fizeram testes de diversas maneiras, variando por exemplo a posição da lâmina cortante em relação às escamas. Eles observaram que, sob pressão, a camada mais externa, mineralizada e dura, vai rachando e depois se fragmentando; isso protege a camada seguinte, a mais repleta de colágeno. Quando chega-se a essa etapa, as fibrilas de colágeno têm mecanismos dinâmicos de deformação, como se fosse uma dança para desviar e amortecer o impacto – elas esticam, rodam, separam-se…
“A observação deste comportamento sugere que a escama do pirarucu pode suportar altas cargas e deformações significativas sem falhas catastróficas”, diz o artigo, que classifica ainda as escamas do peixe como tendo uma “resistência excepcional”.
Os pesquisadores também mediram a tenacidade à fratura em kJ/m2 e a espessura das escamas – no pirarucu, muito maior do que de outras espécies de peixes.
Inspiração em colar artesanal
Mas como os pesquisadores atuando nos EUA chegaram ao pirarucu? Entre os autores, um deles nasceu no Brasil, Marc Andre Meyers, hoje professor na UCSD. Além dele, assinam o artigo Wen Yang, Haocheng Quan e Robert O. Ritchie.
“Marc já viajou algumas vezes para a Amazônia e já até escreveu um livro sobre suas expedições para lá. Ele trouxe de volta (para os EUA) algumas escamas, originalmente na forma de um colar artesanal”, explicou Wen Yang, líder do artigo, à BBC News Brasil por e-mail.
Na publicação, há ainda o agradecimento a um outro professor brasileiro atuante nos EUA, Sergio Neves Monteiro, por “obter as escamas do pirarucu”. A pesquisa teve apoio do Laboratório de Pesquisas da Força Aérea americana.
“Os resultados (dos testes) podem nos orientar a produzir materiais bioinspirados, normalmente nos campos de engenharia e biomédica”, acrescenta Yang.
Por exemplo, coletes à prova de bala normalmente replicam uma combinação de materiais flexíveis e plásticos duros, mas são ligados por um terceiro material colante – enquanto as escamas do pirarucu são agregadas a nível atômico, “crescendo juntas”.
“Uma janela pode parecer forte e sólida, mas se algo tentasse perfurá-la, o vidro quebraria”, explicou Ritchie em um comunicado à imprensa. “Quando a natureza liga um material duro a um material macio, ela o faz em gradativamente, impedindo esse efeito de ruptura (direta). E, neste caso (do pirarucu), a estrutura de ligação é o colágeno mineralizado”.
Pesquisas com o pirarucu no Brasil
As propriedades do pirarucu também são alvo de exploração científica nas universidades brasileiras.
Apresentada em maio de 2018, a dissertação de mestrado de Klaramelia Carpio por exemplo focou no colágeno presente na pele do peixe – mas não incluindo a parte da escama, o que está sendo contemplado agora na sua pesquisa de doutorado, também pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
“O colágeno nunca havia sido extraído do pirarucu antes. Trata-se de uma molécula termosensível, ou seja, é preciso cuidado para manter sua estrutura química com mudanças de temperatura. A temperatura de desnaturação (ponto em que moléculas biológicas perdem suas funções por mudanças no meio) que encontrei foi de 38ºC, o que significa que é ótimo, porque a indústria procura colágenos que não precisem de temperaturas tão baixas. O pirarucu é um peixe tropical”, destacou Carpio, que é peruana, em entrevista à BBC News Brasil por telefone.
“Minha finalidade foi aproveitar um produto da Amazônia, que é consumido mas tem subprodutos descartados (a pele), muitas vezes poluindo os rios. É uma riqueza que pode ser melhor aproveitada e gerar uma bioeconomia para todas as partes envolvidas”, defende a pesquisadora, acrescentando que a sustentabilidade pode ser garantida em parte com o respeito às regras de pesca vigentes por normas oficiais, como períodos delimitados de captura e tamanho mínimo dos animais.
Enquanto o colágeno da tilápia já vem sendo usado na produção de curativos para queimaduras, Carpio acredita que um dia a proteína do pirarucu poderá ter melhor aplicação na indústria alimentícia, na produção de embalagens por exemplo. No doutorado, a peruana está estudando não só o colágeno do pirarucu mas também outras biomoléculas deste peixe.
Outra dissertação de mestrado da UFAM, apresentada este ano por Karyane Meazza, encontrou nos resíduos do pirarucu, incluindo o colágeno, uma fonte promissora para a produção de biomateriais à base de fosfato de cálcio.
O pirarucu é uma espécie comercial – por passar por um processo de salga, é conhecido como “bacalhau da Amazônia” – e vem sofrendo os impactos da pesca em escala. Na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN, na sigla em inglês), porém, não há uma classificação para seu grau de risco, por haver “dados insuficientes” sobre a espécie. Além da alimentação, está em ascensão também o uso do couro do pirarucu na moda –o que vem gerando preocupação entre ativistas da conservação ambiental.
Por BBC